
Último dia do ano de 2023, eu tô ali olhando os stories de diversas pessoas que acompanho no instagram e, de repente, me deparo com a repostagem de uma amiga. Entre fotos e desejos de um ano melhor em 2024, havia uma reivindicação. Era uma repostagem na qual uma moça afirmava que mimar uma mulher negra era uma reparação histórica.
Quando vi, tinha acabado de voltar de um treino, tinha corrido uns 10 quilômetros. Estava meio esbaforido. Já estava deitado na minha esteirinha. Então, eu li, reli, li de novo. Levantei, tomei uma água, passei um café. Bebi com paciência. Respirei e fui fazer o que acho o certo a ser feito quando se trata de uma pessoa amiga, mesmo sabendo que corria vários riscos, pois sou um homem negro e na atualidade homens negros não podem questionar mulheres negras sobre qualquer formulação, já que elas estãao na base da pirâmide social, portanto seria de bom grado respeitar e calar a minha boca porque eu não sofro as dores dela. Mas vá lá…
Chamei a amiga de canto, se é que isso pode ser feito em redes sociais, e falei que podia ser uma armadilha receber afeto como reparação histórica, posto que o que foi feito, e até hoje não foi solucionado, envolveu sequestro, escravização, acúmulo de riquezas a partir do trabalho forçado e políticas de Estado que nos colocou enquanto grupo em situações de desvantagens sistemáticas.
O retorno dela dava conta, em linhas gerais, da solidão e outras questões importantíssimas que foram negadas a mulheres negras e que vão sendo preenchidas negativamente por uma série de outras questões que se relacionam com a construção do ideal branco de beleza.
A partir do que li, fiquei raciocinando se as amarguras ali colocadas e a minha total incapacidade de compreender o que é a solidão da mulher negra por não passar por tal situação, me levou a refletir sobre negação, incapacidade e equívocos. Bom, vou tentar resumir um pouco as questões que foram se acumulando em minha mente.
Quando comecei a ver uma militância negra surgir nas redes sociais há mais ou menos uns 10 anos atrás, fiquei bem feliz de acompanhar pessoas comuns trazendo para a pauta do dia discussões sobre relações raciais que não eram discutidas com magnitude, nem dentro de sala de aula de universidades Brasil afora. Me refiro a esse espaço de privilégio porque é lá que se produz conhecimento legitimado por boa parte da sociedade, mas ainda assim, as discussões quando se conseguia burlar o receio de professores brancos de falar em racismo, ganhavam vieses que muitas vezes desqualificavam leituras sobre tema que não estavam de acordo com ideias formuladas por pesquisadores brancos e que muitas vezes mascaravam situações de racismo escancaradas. A turma da internet estava popularizando um debate que nem a TV estava disposta a fazer. Mesmo com todo o pioneirismo e a disposição para trazer o debate para a ordem pública, junto veio uma galera (cheia de razão) expor quem podia e quem não podia falar de tal ou determinado assunto.
Isso teve início com uma leitura equivocada que a militância da internet passou a fazer do conceito de lugar de fala, popularizado no Brasil pela filósofa Djamila Ribeiro. Segundo boa parte do pessoal que não leu o livro, mas ainda assim se agarrou ao termo, ninguém que não passasse pelas agruras de determinada opressão poderia falar sobre ela, ou até mesmo, se a pessoa pertencesse a um grupo reconhecido como opressor, não poderia expressar qualquer tipo de opinião. Não irei me aprofundar aqui neste tema, mas o lugar de fala da forma como foi traduzido, apresentou uma oportunidade para quem não queria se implicar com determinadas discussões, retirar seu time de campo e por outro lado, a militância mais aguerrida, lacrar com a negação e a possibilidade de todos falar sobre qualquer tema.
Outra abordagem que vem sendo feita há bem mais tempo e que estrapola muito os últimos dez anos de militância da internet se refere aos gostos e preferências afetivas que homens negros héteros, principalmente os que ascenderam economicamente e/ou que se descobriram negros tardiamente, evidenciaram desde o pós-abolição que é o de se relacionar com mulheres brancas direcionando suas atenções, carinhos e partilha de cumplicidades. Se teve uma coisa que o colonialismo fez bem feito, foi colocar pessoas negras umas contra as outras, assim como nos desumanizar apresentando uma impossibilidade de construção de laços de afetos entre negras e negros. Se por um lado dói ser preterida nas possibilidades de trocar afeto de um par da mesma raça, por outro é necessária a reconstrução de um processo de autoamor e de reconstrução de laços de afeto entre pessoas negras de forma que possamos resgatar a incapacidade que nos foi imposta de nos ver como cura.
Voltando ao que motivou a produção deste texto, me preocupa a vulgarização que determinados termos e conceitos vão recebendo com usos inapropriados. Posso falar aqui como exemplo do antirracismo que caiu num modismo capaz de me retirar a quietude. Pois vejo uma série de pessoas e organizações se intitulando antirracistas, mas que não colocam em prática ações mínimas para praticá-lo, são organizações que não contratam pessoas negras para cargos de decisão, são escolas que não tomam atitudes diante de situações de racismo, dentre outras coisas.
Já no que diz respeito às reparações históricas para a população negra, muito tem-se formulado nos EUA, Caribe, América Latina e Brasil. Foram mais de 300 anos de colonização e uso de nossa força de trabalho para enriquecer uma elite branca. São desigualdades profundas que nos colocam em uma situação de desequilíbrio profundo. É negação de direitos, criação de estereótipos, associação constante de negras e negros com o que é ruim, desqualificação de saberes, promoção de auto ódio, dentre outras coisas. Precisamos perceber que, enquanto grupo, precisamos de uma política de reparação de dê conta de resolver os problemas criados pelos brancos no processo de colonialismo e pelas construções cínicas que ao longo de décadas invalidou a possibilidade de criação de políticas públicas que dessem conta de resolver os problemas que o colonialismo alicerçado no racismo foram capazes de criar e não incorrer em equívocos para lacrar nas redes sociais.
Quando leio que mimar uma mulher negra se trata de uma reparação histórica, me vêm duas questões em minha mente, a primeira é que nós homens negros precisamos dar conta de um problema que nos acomete enquanto grupo também oprimido, portanto é necessário que também tenhamos condições de nos curar para resolver tal problema e essa cura não é somente para o homem negro, é para ser realizada junto com a mulher negra. E a outra é que não dá para usar termos que nos são tão caros como reparações históricas para tratar de um tema relevante, mas que vai dar conta da autoestima de parte do grupo e não resolver problemas fundantes das desigualdades sociais que estão pautadas nas diferenças raciais. E aqui reside boa parte da minha preocupação. Pois foram os europeus que criaram essa concepção de mundo moderno no ocidente, na qual a raça é alicerce para as relações de trabalho e de exploração, tendo a branquitude como principal beneficiária. Criaram isso e de uma forma cínica colocam na conta de quem amarga as disparidades os seus resultados.
Bom, esse texto inicial no blog do Quilombo Literário, no ano de 2024, foi escrito com o intuito de refletir sobre posicionamentos diversos de pessoas que sentem e vivem os problemas causados pelo colonialismo e desejar FELIZ ANO NOVO para todes, todas e todos e que sejamos capazes de, enquanto grupo, exercitar afirmações positivas, sermos capazes e assertivos.