Um defeito de cor: quando a literatura se torna enredo do carnaval

Imagem: Divulgação do enredo da Portela

Na segunda-feira de carnaval vivemos um importante momento para a literatura brasileira. O livro um defeito de cor, da escritora Ana Maria Gonçalves, foi enredo da escola de samba Portela. Para dar a real dimensão da grandiosidade dessa questão, vamos aos números. 

Um defeito de cor foi um livro lançando em 2006, livro de estreia da autora e que conta, em quase 900 páginas, a historia de Kehinde, uma mulher negra que veio para  Brasil escravizada quando ainda era criança e que faz toda a sua vida neste território lutando por sua liberdade e por outras pessoas também escravizadas. 

Além de ser um livro enorme, é um livro muito denso, triste e que narra com muitos detalhes as agruras da escravidão no Brasil. É um livro dolorido de ler. Na minha experiência, as primeiras 50 páginas foram lidas intermeada com pausas para o choro e para recobrar as forças, porque imaginar a travessia de pessoas escravizadas não é nada fácil para pessoas negras, descendentes desses que foram escravizados. 

Imagem: Print da transmissão pela Tv Globo combinada com capa do livro

Eis que a Portela, escola de samba da zona norte do Rio de Janeiro, no ano do seu centenário decide trazer para a Marquês de Sapucaí esta história. Apesar de ser uma obra ficcional, Ana Maria Gonçalves faz algumas conexxões com a realidade, sugerindo que sua protagonista Kehinde seja Luiza Mahin, mulher negra ex-escravizada e personalidade considerada articuladora na Revolta dos Malês, na Bahia. E além disso, considerada mãe do lider abolicionista Luiz Gama. 

O argumento do enredo da escola foi elaborado a partir de uma carta,também ficcional, escrita por Luiz Gama onde o importante abolicionista responde a sua mãe sobre o legado da memória que ela deixou. È o afeto fazendo a reunião de dos personagens históricos e trazendo para as mães pretas um lugar de reconhecimento por toda a luta na manutenção da nossa cultura e ancestralidade. 

No livro, Kehinde passa por inúmeras dificuldades ao longo de sua vida, mas nunca perde a esperança de reencontrar seu filho que foi vendido como escravo no Brasil no século XVIII. O desfile da Portela trouxe destaque para a força das mulheres negras e mães, principalmente aquelas que perderam seus filhos seja pela violência do Estado, como as Monica Cunha, seja por violência política, como a mãe da Marielle, seja por violência policial, como a mãe de Kathlen Romeu que foi morta com um tiro de fuzil no peito disparado por um policial militar do Rio de Janeiro em 2021. Ela estava grávida de 3 meses.

Foto: Fotografia da tela da TV durante a transmissão pela Globo.

Foi um desfile que levantou muitas dores, mas também mostrou a força e a resiliência das mães negras, e da população negra em geral. E conseguir realizar isso a partir de uma obra literária tão importante, mas também, tão distante da maioria da população pelo seu tamanho, foi revolucionário. Na manhã seguinte, o livro estava esgotado na Amazon. Se todas as pessoas que o compraram vão ou não lê-lo por inteiro, não é a questão. 

O que esse fenomeno mostra é que nossa literatura negra está viva, mobilizando os sentimentos da sociedade brasileira, agitando a torcida em um desfile de carnaval e alcançando pessoas que talvez jamais alcançaria se não tivesse ocorrido esse crossover com o carnaval, mas que entendem a potência das nossas histórias, ficcionais ou reais, que mostram a dificuldade que é ser uma pessoa negra nesse país forjado pelo racismo. 

Foi um desfile emocionante e histórico que já começou sendo premiado com o Estandarte de Ouro de 2024. Mas, mais que isso, chegou ao coração da população negra brasileira, denunciou novamente o racismo que permeia as nossas relações e apresentou uma das maiores obras literárias brasileira para o grande público. 

SARAVÁ KEHINDE! TEU NOME VIVE!

TEU POVO É LIVRE! TEU FILHO VENCEU, MULHER!

EM CADA UM DE NÓS, DERRAME SEU AXÉ!

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